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Hume e a teoría da Identidade Pessoal

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A TEORIA HUMEANA DA IDENTIDADE PESSOAL. 
– Fábio Augusto Guzzo.


RESUMO:


Na primeira parte do artigo, apresento a infame teoria humeana da identidade
pessoal. Infame porque seu próprio autor a rejeitou no Apêndice à sua obra máxima,
o Tratado da Natureza Humana. Na segunda parte, apresento o Apêndice. A
pergunta fundamental é: por que Hume rejeitou sua teoria inicial? Os comentadores
dividem-se entre aqueles que vêem um problema menor, técnico, na explicação da
crença na identidade pessoal e aqueles que vêem um problema maior, filosófico, que
afetaria não só a seção “Da identidade pessoal” como todo o projeto empirista
desenvolvido no Tratato da Natureza Humana. Na terceira parte, exponho alguns
dos problemas (técnicos) que podem ter levado à insatisfação apresentada pelo
Apêndice. Na quarta parte do artigo, exponho a interpretação ontológica, que vê no
Apêndice a emergência de um problema filosófico, e tento mostrar sua
implausibilidade.


PALAVRAS CHAVE: Apêndice; Hume; Identidade Pessoal.
THE HUMEAN THEORY OF PERSONAL IDENTITY

ABSTRACT:

In the first part of the paper, I present the infamous humean theory of personal
identity. Infamous, because his own author rejected it in the Appendix of his greater
work, the Treatise of Human Nature. In the second part, I present the Appendix. The
fundamental question is: why does Hume rejected his early theory? The
commentators divides themselves between those that see a minor, thecnical problem
in the explanation of the belief in personal identity, and those that see a major,
philosophical problem, which would affect not only the section “Of personal
identity” but also the whole empiricist project developed in the Treatise. In the third
part, I expose some of the (thecnical) problems that may have led to the insatifaction
presented by the Appendix. In the fourth part, I expose the ontological interpretation,
which see in the Appendix the emergence of a philosophical problem. I try to show
its implausibility.


     Após negar, na seção “Da imaterialidade da alma” (Tratado da Natureza
Humana, Livro I, Parte IV, Seção 5), a existência da alma enquanto substância,
Hume afirma, na seção “Da identidade pessoal” (Livro I, Parte IV, Seção 6), que não
temos idéia alguma de nosso eu.

     Segundo Hume, acreditamos na identidade pessoal porque confundimos as
noções de identidade e diversidade. Embora tais idéias sejam claramente distintas, as
“ações da mente” pelas quais as apreendemos são semelhantes. É essa semelhança
que gera a confusão e, conseqüentemente, a crença na identidade quando, na
verdade, temos apenas uma multiplicidade de objetos distintos:
A ação da imaginação pela qual consideramos o objeto ininterrupto e
invariável e a ação pela qual refletimos sobre a sucessão de objetos
relacionados são sentidas de maneira quase igual, não sendo preciso um
esforço de pensamento muito maior neste último caso que no primeiro. A
relação facilita a transição da mente de um objeto ao outro, e torna essa
passagem tão suave como se contemplássemos um único objeto contínuo
(T 253-4)2.
Esssas operações mentais são provocadas de acordo com o conteúdo das
percepções, sendo que “os únicos objetos variáveis e descontínuos que supomos
continuar são os que consistem em uma sucessão de partes conectadas por
semelhança, contigüidade ou causalidade” (T 255). Assim, como diz Stroud (1977, p.
121), um primeiro passo é dado na direção contrária à dos metafísicos: não mais
precisamos da noção de substância para mostrar como atribuímos identidade aos
objetos. O que cabe a Hume, então, é provar que todos os objetos aos quais
atribuímos essa noção são constituídos por uma sucessão das qualidades acima
mencionadas.

O que Hume faz, com esse propósito, é estabelecer uma analogia entre os
fenômenos da identidade material e mental. Exemplos de sua tese são casos nos
quais desconsideramos mudanças que, a rigor, destroem a identidade dos objetos em
questão. Por que fazemos isso? Porque as partes que constituem o objeto se
relacionam de acordo com qualidades que ocasionam uma transição mental de tipo
peculiar.

Sendo assim, impõe-se a questão: como atribuir identidade a um objeto
quando o próprio observador, segundo a filosofia humeana, não é nada senão um
feixe de percepções em constante revolução?
2 Como de praxe na literatura sobre Hume, cito por “T” o livro A Treatise of Human Nature. L. A.
Selby-Bigge, ed. 2nd ed. revised by P. H. Nidditch. Oxford: Clarendon Press, 1978. A tradução
utilizada é a de Débora Danowski (Tratado da Natureza Humana. São Paulo: UNESP, 2001).
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A teoria humeana da identidade pessoal – Fábio Augusto Guzzo.
Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.5, n.1, junho/2012. 3
Nossos olhos não podem girar em suas órbitas sem fazer variar nossas
percepções. Nosso pensamento é ainda mais variável que nossa visão; e
todos os outros sentidos e faculdades contribuem para essa variação. Não
há um só poder na alma que se mantenha inalteravelmente o mesmo,
talvez sequer por um instante (T 252-3).
Ou seja, a atribuição de identidade deve ser explicada não obstante nunca ser
“encontrada” na experiência. Que não haja identidade no mundo físico parece
concordar com as teses anti-metafísicas de Hume, segundo as quais não temos idéia
alguma das substâncias ou formas substanciais dos antigos nem das qualidades
primárias dos modernos (T 219-231). Ou seja, não há nenhum princípio inteligível
que responda pela identidade dos objetos. Isso inclui, obviamente, a identidade do
sujeito. E por isso a teoria humeana é tão interessante quanto difícil.
Para Hume, é da natureza dos objetos temporais a mutabilidade, que é
dissimulada somente quando uma identidade proveniente do pensamento (ou seja,
uma certa relação entre percepções) entra em cena:
A identidade que atribuímos à mente humana é apenas fictícia, e de um
tipo semelhante à que atribuímos a vegetais e corpos animais. Não pode,
portanto, ter uma origem diferente, devendo, do contrário, proceder de
uma operação semelhante da imaginação sobre objetos semelhantes (T
259).
Se a mente é um feixe de percepções, devemos perguntar de que modo esse
feixe pode estar constituído de forma a crermos em sua identidade. Que todas as
percepções sejam distintas e separáveis é um dos princípios da filosofia humeana,
[m]as, apesar dessa distinção e separabilidade, supomos que todo o curso
de percepções está unido pela identidade. Por isso, é natural que surja
uma questão acerca dessa relação de identidade: (i) ela é algo que
realmente vincula nossas diversas percepções, (ii) ou apenas associa suas
idéias na imaginação? Em outras palavras, quando fazemos uma
afirmação sobre a identidade de uma pessoa, (i) observamos algum
vínculo real entre suas percepções, ou (ii) apenas sentimos um vínculo
entre as idéias que formamos dessas percepções? (T 259, índices meus).
O que observamos, nessa passagem, são duas alternativas para a resolução do
problema: (i) ou a identidade pessoal é algo que observamos; (ii) ou ela é formada
através da imaginação.
Segundo Hume, as relações que “produzem esse progresso ininterrupto de
nosso pensamento, quando consideramos a existência sucessiva de uma mente ou
pessoa pensante” (T 260) são a semelhança e a causalidade, tendo a contigüidade
“pouca ou nenhuma influência neste caso” (ibid.). Quando Stroud (ver 1977, p. 260,
n. 1) justifica a desconsideração da contigüidade, ele toma como um fato óbvio que
percepções não estão no espaço. Contudo, como considerar a idéia de um objeto
extenso qualquer à parte de seu conteúdo, que é espacial? Para Hume, se uma idéia
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se refere a um objeto extenso, ela somente o pode fazer por semelhança, o que
significa que ela própria é extensa (ver FALKENSTEIN 1995; 2002).
Por que, então, excluir a contigüidade espacial? Não porque as percepções
sejam essencialmente inextensas, como afirma Stroud, mas porque algumas delas são
localizáveis no espaço, enquanto outras (a maioria delas, segundo Hume) não o são
(cf. T 235). Essa constatação se dá pela observação do conteúdo das percepções, ou
seja, baseia-se na fenomenologia das percepções. Presumivelmente, se as
considerássemos de um ponto de vista científico, a teoria ontológica do final da
seção “Da imaterialidade da alma” (T 232-251) se aplicaria: uma teoria
suficientemente desenvolvida nos mostraria que todas as nossas percepções são
modificações de nosso organismo.3
O que ocorre, então, é que a adoção da perspectiva da primeira pessoa nos
incapacita de apreender a contigüidade espacial entre nossas percepções4. Como diz
Flage (1982, p. 536), um sistema mental não é essencialmente caracterizado pela
espacialidade. Resta-nos esclarecer de que modo operam as relações de semelhança e
causalidade.
Atentemos pois para as duas relações identificadas por Hume como estando
na origem da crença na identidade pessoal. Em primeiro lugar, observa-se uma
semelhança entre as percepções de uma pessoa. Produzida pela memória, essa
semelhança ajudaria, de alguma forma, a delimitar a variação característica da
consciência, fornecendo assim uma base para a crença em sua unidade:
Pois o que é a memória, senão a faculdade pela qual despertamos as
imagens de percepções passadas? E como uma imagem necessariamente
se assemelha a seu objeto, a freqüente inserção dessas percepções
semelhantes na cadeia de pensamento não deve conduzir a imaginação
mais facilmente de um elo a outro, fazendo o todo se parecer com a
continuação de um objeto único? (T 260-1).
De acordo com Green, Hume estaria aqui corrigindo a tese lockeana, “a qual
afirmava que a lembrança de uma experiência passada é condição necessária e
suficiente para a identidade entre a pessoa que lembra e a pessoa que teve a
experiência” (1999, p. 107), isto é, de que a consciência é condição necessária e
suficiente da identidade pessoal.
A contribuição de Hume a essa teoria teria sido a explicação genética dessa
crença: a semelhança produz a identidade porque faz “o todo se parecer com a
continuação de um objeto único”. Um objeto único, segundo a teoria humeana da
identidade, é uma sucessão de percepções que, por serem semelhantes, facilitam a
transição mental (ver T 203-4). Assim, a memória ajuda a mente a confundir um
3 Afirmarei, a seguir, que a contiguidade espacial desempenha sim um papel importante na teoria da
identidade pessoal. Para isso, é importante que se distinga a contigüidade espacial enquanto tese
epistemológica e enquanto tese ontológica.
4 Conforme Biro (1994), Hume se compromete, seguindo a tradição da filosofia moderna, com uma
investigação fenomenológica da mente. Ainda assim, como sustenta John Wright (1983), é plausível
que toda essa fenomenologia seja ontologicamente ligada à uma base neurosifiológica.
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feixe de percepções completamente distintas (a própria mente) com um feixe de
percepções perfeitamente semelhantes (o objeto singular). A memória, portanto, seria
indispensável na constituição daquela consciência cuja identidade, segundo Locke,
determinava a identidade de uma pessoa (ver NOONAN, 1991, p. 41).
A semelhança, contudo, é apreendida devido ao conteúdo fenomenológico
das percepções, ou seja, não é uma relação que determina a existência de uma
percepção em virtude da existência de alguma outra. Assim, se cada percepção é
como uma substância, existindo separadamente de todas as outras, como elas podem
estar unidas num mesmo feixe, se a semelhança não pode ser responsável por tal
união? Sem a possibilidade de apelar a qualquer conexão real ou lógica entre elas,
Hume afirma que o único modo de explicar a existência de uma percepção é a
causalidade:
Podemos observar que a verdadeira idéia de uma mente humana é a de
um sistema de diferentes percepções ou diferentes existências, encadeadas
pela relação de causa e efeito, e que produzem, destroem, influenciam e
modificam-se umas às outras. Nossas impressões originam suas idéias
correspondentes; e essas idéias, por sua vez, produzem outras impressões.
Um pensamento expulsa outro pensamento, e arrasta consigo um terceiro,
que o exclui por sua vez (T 261).
Como salienta Kemp Smith (1966, p. 503), a ênfase na causalidade significa
que a identidade pessoal tem, assim como os objetos externos, um modo de existir
condicionado, ou seja, não possui uma identidade absoluta e essencialmente
imutável5. Assim, embora tudo o mais mude, as relações causais entre as percepções
são permanentes:
Assim como a mesma república individual pode mudar não só seus
membros, mas também suas leis e constituições, assim também a mesma
pessoa pode variar seu caráter e disposição, bem como suas impressões e
idéias, sem perder sua identidade. Por mais mudanças que sofra, suas
diversas partes estarão sempre conectadas pela relação de causalidade (T
261).
Contudo, é difícil compreender como a mera relação causal pode conservar a
identidade de algo: se o universo admite a explicação causal promulgada pela
ciência, segue-se que tudo é relacionado causalmente e, assim, segundo o critério
humeano de que a causalidade é responsável pela relação de identidade, essa
totalidade possuiria uma identidade tanto quanto os objetos particulares. Isto é, a
mera relação causal não parece suficiente para determinar a identidade de algo. Deve
5 Assim, devemos tomar com cuidado a afirmação humeana de que cada percepção é uma substância
(T 233). O propósito deve ter sido apenas o de mostrar que a noção de substância, aplicando-se às
percepções (ou seja, às entidades paradigmaticamente consideradas como acidentes), não tem nenhum
poder explicativo. Ao contrário, o que explica os fenômenos é a descoberta das relações causais que
os objetos e eventos mantém entre si, e não de distinções ontológicas ou qualitativas. Como fica
evidente na seção “Da identidade pessoal”, isso não é menos verdadeiro a respeito da mente do que a
respeito dos objetos externos.
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haver, então, algo que restrinja o escopo da causalidade de tal modo a produzir
identidade no âmbito somente de um certo conjunto de percepções. Argumentarei a
seguir que o ponto de partida da investigação humeana são apenas as percepções que
se localizam no corpo do sujeito. É a partir desse conjunto delimitado de percepções
que as associações de idéias explicariam a crença na identidade pessoal.
A memória e a causalidade devem ser compreendidas em suas relações
recíprocas. A memória, como diz Hume, é a “fonte” da identidade pessoal. Ela é, por
assim dizer, o lado consciente da identidade (aspecto epistemológico ou
fenomenológico), enquanto a causalidade é o lado inconsciente (aspecto ontológico
ou físico) da nossa identidade: “se não tivéssemos memória, jamais teríamos
nenhuma noção de causalidade e tampouco, por conseguinte, da cadeia de causas e
efeitos que constitui nosso eu ou pessoa” (T 261-2).
Em Hume a memória, sendo a revelação da causalidade (e não sua produção),
não é mais que uma evidência da identidade pessoal. Desse modo, pelo fato de não
equacionar consciência e identidade pessoal, Hume admite estendermos a
causalidade, e assim nossa identidade, até momentos dos quais não temos lembrança
alguma:
Uma vez tendo adquirido da memória essa noção de causalidade,
podemos estender a mesma cadeia de causas, e conseqüentemente a
identidade de nossas pessoas, para além de nossa memória; assim
podemos fazê-la abarcar tempos, circunstâncias e ações de que nos
esquecemos inteiramente, mas que, em geral, supomos terem existido.
Pois são muito poucas as ações passadas de que temos alguma memória
(T 262).
Assim, identificando a identidade pessoal com uma relação que transcende o
conteúdo da consciência, a teoria humeana estaria imune à crítica formulada por
Reid:
não é estranho que a uniformidade ou identidade de uma pessoa deva
consistir numa coisa que está continuamente mudando, e não é a mesma
nem por dois minutos? [...] Nossa consciência, nossa memória, e toda
operação de nossa mente, estão ainda fluindo como a água de um rio, ou
como o próprio tempo (REID, 2002, p. 278).
Por essa razão, Reid não hesita em dizer que nossa identidade ou
personalidade é indivisível. Reid tem, na posse de uma alma, que seria propriamente
a parte indivisível de nosso ser, um critério infalível para a identidade pessoal: “eu
não sou pensamento, não sou ação, não sou sentimento; sou algo que pensa, que age,
que sente” (REID, 2002, p. 264).
Segundo Hume, ao contrário, as questões envolvendo identidade são incertas
e insolúveis. Por quê? Porque a identidade não é encontrada na experiência, mas sim
produzida por uma transição mental cuja operação não admite qualquer quantificação
ou padronização:
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A identidade depende das relações entre as idéias; e essas relações
produzem a identidade por meio da transição fácil que ocasionam. Mas
como as relações e a facilidade da transição podem diminuir gradativa e
insensivelmente, não possuímos um critério exato que nos permita
resolver qualquer controvérsia sobre o momento em que adquirem ou
perdem o direito ao nome de identidade (T 262).
Identidades são produzidas, eis a conseqüência do atomismo humeano.

O Apêndice
Como é sabido, no Apêndice Hume retoma o tema da identidade pessoal e
exprime dúvidas sobre sua teoria inicial: “ao fazer uma revisão mais cuidadosa da
seção concernente à identidade pessoal, vejo-me perdido em um tal labirinto que,
devo confessar, não sei nem como corrigir minhas opiniões anteriores, nem como
torná-las coerentes” (T 633).
A dificuldade descoberta do Apêndice é apresentada assim:
[...] meu argumento parece ter uma evidência suficiente. Mas, tendo assim
afrouxado o laço entre todas as nossas percepções particulares, quando
passo a explicar o princípio de conexão que as liga, e que nos faz atribuir
a elas uma real simplicidade e identidade, percebo que minha explicação
é muito deficiente, e que só a aparente evidência dos raciocínios
anteriores pode ter-me levado a aceitá-la (T 635; itálico meu).
A seção “Da identidade pessoal” dizia que os princípios responsáveis pela
crença na identidade pessoal atuam no pensamento, e não nas percepções nelas
mesmas, que são todas distintas e separadas. Como diz Ainslie (2001, passim), tal
pensamento ou reflexão é constituído por idéias secundárias, ou seja, idéias que se
referem às nossas próprias percepções: “apenas o pensamento encontra a identidade
pessoal, quando, ao refletir sobre a cadeia de percepções passadas que compõem uma
mente, sente que as idéias dessas percepções estão conectadas entre si, e que
introduzem naturalmente umas às outras” (T 635). “Mas”, continua Hume,
todas as minhas esperanças se desvanecem quando¹ passo a explicar os
princípios que unem nossas percepções sucessivas em nosso pensamento
ou consciência. Não consigo descobrir nenhuma teoria que me satisfaça
quanto a esse ponto (T 635-6, itálico meu).
Segundo Stroud, haveria dois modos de interpretar essa passagem:
(i) ela pode significar que Hume não tem qualquer esperança de explicar
o que realmente une nossas percepções sucessivas numa mente ou
consciência - o que atualmente as une de modo a constituir uma mente.
(ii) Ou pode significar que ele não tem qualquer esperança de explicar
quais características de nossas percepções e quais princípios da mente se
combinam para produzir em nós o pensamento ou crença de que somos
mentes individuais - o que une as sucessivas percepções em nosso
pensamento, ou que nos faz pensar nelas como unidas juntas. Obviamente
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estas duas interpretações são diferentes (STROUD, 1977, p. 133; índices
meus).
Chamarei a interpretação (i) de ontológica, e a (ii) de epistemológica. Qual é
a correta?
Ellis (2006, p. 201-8) aponta o fato de que a nota após “quando” ajuda a
esclarecer o problema descoberto por Hume no Apêndice. Nessa passagem, é
indicado o momento em que uma revisão da seção “Da identidade pessoal” torna-se
necessária, ou seja, “quando passo a explicar o princípio de conexão que as liga [as
percepções], e que nos faz atribuir a elas uma real simplicidade e identidade” (T 635,
itálico meu). Ellis observa que, na primeira edição do Apêndice, a nota se refere a
uma página que trata dos princípios de associação por semelhança e causalidade e de
sua aplicação à identidade pessoal6. Tudo indica, então, que a dúvidas humeanas
devem ser interpretadas de acordo com a segunda interpretação listada por Stroud.
O que Hume veio a descobrir no Apêndice, então? Por que os princípios de
associação, que funcionaram tão bem na explicação do objeto externo e da
causalidade, revelam-se insatisfatórios no caso da identidade pessoal?
As últimas palavras do Apêndice sobre a identidade pessoal são pouco
esclarecedoras:
há dois princípios a que não posso renunciar, mas que não consigo tornar
compatíveis: que todas as nossas percepções distintas são existências
distintas, e que a mente nunca percebe nenhuma conexão real entre
existências distintas. Se nossas percepções fossem inerentes a alguma
coisa simples e individual, ou então se a mente percebesse alguma
conexão real entre elas, não haveria dificuldade alguma (T 636).
É unânime, entre os comentadores, a opinião de que esses dois princípios não
são incompatíveis entre si, pois o segundo é uma conseqüência epistemológica da
tese ontológica expressa no primeiro. A incompatibilidade deveria ocorrer, então,
entre esses dois princípios, que são fundamentais na filosofia humeana, e um terceiro
elemento. Qual é esse outro elemento? Presumivelmente, é a crença na identidade
pessoal: como podemos formar a crença num eu simples e indivisível se nossas
percepções não inerem numa substância e nem têm conexões reais umas com as
outras?
Temos de explicar o seguinte: aparentemente, esse pronunciamento humeano
candidata duas teses metafísicas como possíveis soluções para o problema da
identidade pessoal: a inerência das percepções numa substância e a conexão real
entre as percepções. Contudo, a nota no Apêndice identifica tal problema como uma
dificuldade psicológica ou epistemológica, isto é, a dificuldade de explicar como a
crença pode se originar dos princípios de associação.
É bem verdade que as possibilidades metafísicas do Apêndice estão ligadas a
suas conseqüências epistemológicas: elas só seriam relevantes se pudéssemos
6 A nota original se refere a T 260, da passagem “if disjoined by the greatest...”, no primeiro
parágrafo, até “… this sucession amidst all its variations”, no terceiro parágrafo.
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perceber a relação de inerência ou a de conexão necessária. Ainda assim, elas são
contrárias à nota porque, dessa forma, a crença na identidade pessoal não estaria
vinculada às associações de idéias, à reflexão mediante idéias secundárias, mas sim à
percepção de relações reais entre elas.
Na próxima seção apresento alguns dos problemas que poderiam ter sido
suscitados pela aplicação dos princípios de associação. Ainda que eu deixe em aberto
o motivo exato para as dúvidas de Hume, sustento que é esse aspecto de sua teoria
que Hume julgou ser insatisfatório. Na última seção do artigo apresento uma
interpretação que identifica um problema ontológico na tese humeana sobre a
identidade pessoal. Procuro mostrar que essa interpretação é implausível,
considerada sob a luz do projeto levado a cabo na filosofia humeana.
O problema epistemológico
De que modo uma semelhança entre percepções pode originar a crença na
identidade pessoal? Segundo Hume, a semelhança facilita a transição mental entre
uma percepção e outra, dessa forma conferindo uma certa unidade ao feixe. Mas por
que há semelhança entre percepções? Ora, se minha memória de p se assemelha à
minha percepção de p, ela se assemelha também à percepção de p tida por outro
sujeito. Essa semelhança, contudo, facilita somente a transição mental entre as
minhas percepções. Isso mostra que o escopo da semelhança não é universal, mas se
restringe apenas a um conjunto determinado de percepções.
Esse é o ponto da crítica de Butler à teoria lockeana, ao afirmar que a
memória pressupõe a identidade assim como o conhecimento pressupõe a verdade
(ver BUTLER, 1736, p. 302). Tal problema não atinge a teoria humeana pois,
segundo ela, “a memória não tanto produz, mas revela a identidade pessoal” (T 262).
Mas, devemos perguntar, a semelhança seria suficiente mesmo para apenas revelar a
identidade pessoal?
Roth (2000) identifica um problema a partir da constatação de que o modelo
humeano adotado para explicar a identidade pessoal é baseado na identidade dos
objetos externos. A análise de Roth parte de dois pressupostos: (i) a rejeição da
distinção entre percepções e objetos e (ii) a constatação de que nossa experiência é
de uma pluralidade de objetos. A partir daí, surgiria um problema epistemológico7:
as duas tendências ou atos mentais, que unificam nossas percepções e produzem as
crenças na identidade pessoal e material, seriam incompatíveis. Vejamos por quê.
A primeira tendência tomaria um grupo de percepções relacionadas pela
constância e coerência e formaria a idéia de um objeto independente. Tal como deve
haver um princípio de identidade associado a essa tendência, a consciência de uma
multiplicidade de objetos pressupõe um princípio de diferenciação. Como esse
7 E não metafísico, como querem aqueles que se concentram nos critérios de individuação mental. O
problema metafísico seria o de fornecer critérios necessários e suficientes para a identificação de uma
mente (a primeira alternativa de Stroud). O problema psicológico é o de saber como surge a crença na
identidade de uma mente (a segunda alternativa).
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princípio poderia operar, se a crença na identidade pessoal, por sua vez, requer que
não notemos a distinção e variabilidade de nossas percepções?
[S]e eu uno todas as minhas percepções (o que é necessário para a crença
na identidade pessoal), então não posso ao mesmo tempo unir algumas
dessas percepções excluindo algumas outras (o que é necessário para a
crença na persistência de objetos distintos e independentes) (ROTH,
2000, p. 105).
Lembremos que, para Hume, a diferença é a negação de uma relação (ver T
15). Assim, ali onde há uma multiplicidade de objetos distintos, não pode haver um
ato mental que, devido a relações naturais de idéias, abarque todas as percepções que
constituem nossa experiência. Desse modo, como estender nossa identidade através
do curso inteiro de nossas vidas se devemos, ao mesmo tempo, reconhecer uma
multiplicidade de objetos distintos e independentes?
Uma solução para o problema encontrado por Roth seria interpretar a relação
causal, responsável pela verdadeira idéia da mente humana (T 261), como uma
associação não-natural, ou seja, de tal forma que não envolva em seu escopo todas as
percepções já possuídas por nós. Dessa forma, seria justificada a constatação de Ellis
(2006, p. 215), segundo a qual a crença na identidade pessoal não exige que a
totalidade de nossas percepções seja apreendida e confundida num mesmo ato
mental, o que, convenhamos, é uma exigência um tanto implausível. O objetivo da
seção “Da identidade pessoal”, contudo, parece ser o de tomar a semelhança e a
causalidade como relações naturais de idéias. É possível outra leitura da seção?
Waldow diz algo na direção daquilo que procuramos. Comentando a analogia
entre o eu e uma república, que conclui com a afirmação de que “por mais mudanças
que [uma pessoa] sofra, suas diversas partes estarão sempre conectadas pela relação
de causalidade” (T 261), Waldow interpreta a causalidade da seguinte maneira:
essa dependência consiste no fato de que cada uma de nossas percepções
é causada por outras (o que não implica, é claro, que essa causação
envolva sempre a relação associativa de causação, enquanto oposta à
semelhança e à contigüidade; toda associação de idéias é um processo
causal) (2006: 9).
Assim, para Waldow, a causalidade que envolve a totalidade de nossas
percepções deve ser compreendida como uma dependência associativa entre as
percepções, ou seja, uma dependêndia que se manifesta por associações não apenas
causais como também por semelhança e contigüidade. Desconsiderando o problema
da evidência textual, deveríamos perguntar se essa interpretação da causalidade
escaparia às críticas de Roth.
Se a transição mental ocorre de acordo com três princípios distintos, é
plausível que ela não tenha como condição a desconsideração da distinção entre o
conteúdo das percepções (distinção essa que fundamentaria o reconhecimento de
uma multiplicidade de objetos). Afinal, a transição não se daria apenas através da
semelhança (que é por excelência a relação constitutiva dos feixes de percepções
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objetivas), mas também pela contigüidade e pela causalidade. Que a contigüidade
seja restituída ao domínio do mental não contradiz a doutrina humeana, que jamais
chegou a excluí-la definitivamente: “é evidente que devemos nos limitar à
semelhança e à causalidade, deixando de lado a contigüidade, que tem pouca ou
nenhuma influência neste caso” (T 260, itálicos meus). Por que Hume concede a
possibilidade de que a contigüidade possa ter uma influência, ainda que mínima?
Ora, se a contigüidade espacial não pode abarcar todas as nossas percepções, visto
que a maioria delas é inextensa, ainda assim ela se aplica ao conjunto formado pelas
percepções extensas.
Teríamos, assim, um sentido de causalidade epistemologicamente
transparente, ou seja, que poderia servir de evidência para a identidade pessoal por
produzir uma transição fácil entre as percepções. Quando Hume descreve a
causalidade operante entre nossas percepções ele parece ter em vista esse sentido
amplo de causalidade:
Nossas impressões originam suas idéias correspondentes; e essas idéias,
por sua vez, produzem outras impressões. Um pensamento expulsa outro
pensamento, e arrasta consigo um terceiro, que o exclui por sua vez (T
261).
Poderíamos, a partir das considerações precedentes, distinguir a causalidade
de três modos:
(i) Sentido ontológico: aqui a causalidade é apenas inferida, ou seja, a partir da
observação de que impressões produzem idéias, de que as percepções “produzem,
destroem, influenciam e modificam-se umas às outras” (ibid.), supomos que todas
elas se relacionam causalmente. Mas não teríamos, no sentido estrito, uma idéia
dessa causalidade. Isso estaria de acordo com a interpretação realista cética de
Wright (1983), por exemplo, segundo a qual podemos conceber aquilo que não
conseguimos imaginar. Contudo, há o problema da evidência textual: a seção “Da
identidade pessoal” introduz a causalidade enquanto relação natural, isto é, enquanto
produtora de uma associação entre idéias. Assim, mesmo que ontologicamente nosso
organismo seja composto de uma multiplicidade de elementos materiais relacionados
causalmente, esse fato, por si só, não explica como chegamos a nos conceber como
pessoas, ou seja, como chegamos a acreditar que todas as nossas percepções estejam
unidas pela relação de identidade.
(ii) Sentido epistemológico amplo: num sentido amplo, a causalidade que
une todas as nossas percepções é compreendida como qualquer um dos princípios de
associação de idéias (ver WALDOW 2006). Assim, as associações por semelhança,
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contigüidade ou causalidade contam igualmente como relações causais entre as
idéias. É plausível que, havendo qualquer associação entre minhas idéias (qualquer
dos três casos acima), deva haver alguma forma de identidade entre elas: afinal, sou
eu que as tenho, e ninguém mais. É por isso que “a mesma pessoa pode variar seu
caráter e disposição, bem como suas impressões e idéias, sem perder sua identidade”
(T 261). Ou seja, apesar do pluralismo ontológico (variação das impressões e idéias)
e do pluralismo psicológico (variação do caráter e disposição), a pessoa preserva sua
identidade desde que haja uma continuidade nas ações mentais, continuidade essa
que é explicada pela relação causal que conecta as percepções.
(iii) Sentido epistemológico estrito: a causalidade em sentido estrito é a
relação natural que envolve a conjunção constante. Embora essa pareça ser a
interpretação condizente com o texto da seção “Da identidade pessoal”, ela enfrenta
várias dificuldades.
(i) Em primeiro lugar, é plausível que ocorra uma causalidade interpessoal
entre percepções: quando uma percepção do tipo a ocorre em minha mente, uma
outra do tipo b ocorre na de outra pessoa, e outra do tipo c ocorre na mente de uma
terceira pessoa etc. É provável que isso ocorra num diálogo, como diz Noonan (1991,
p. 97). Assim, se a mera semelhança não garantia a singularidade do feixe, a
causalidade não o faria melhor: “isto quer dizer que conjunções constantes ocorrem
entre vários tipos de percepções, independentemente de qual mente possua as
percepções em questão” (STROUD 1977, p. 125).
(ii) Uma segunda crítica sustenta que, nem mesmo entre um feixe que
tomamos, de antemão, como constituindo uma pessoa, a causalidade é adequada para
explicar a crença na identidade pessoal. Isso porque a concepção humeana da
causalidade exige uma regularidade incompatível com nossa vida mental.
De que modo a causalidade originaria a transição mental que Hume sustenta
ser a origem da nossa crença? Para descobrirmos que um certo feixe é relacionado
causalmente teríamos de observar que a percepção a, por exemplo, causa a percepção
b. A tese humeana, prima facie, exige que todas as percepções estejam relacionadas
causalmente. Teríamos de ter observado que a percepção b é causa da percepção c, e
assim por diante. Ora, segundo a concepção humeana, isso seria possível somente se
observássemos uma conjunção constante entre a e b, entre b e c, e conseqüentemente
entre toda a seqüência abc... Isso exigiria que o surgimento de uma percepção
qualquer fosse sempre acompanhado do surgimento de uma outra (e sempre a
mesma) seqüência de percepções. Nossa experiência, contudo, torna tal regularidade
uma exigência irrealista:
quando estou tendo a impressão de uma árvore, posso virar minha cabeça
e receber a impressão de um prédio, mas a primeira impressão não é uma
causa da segunda. A primeira não pertence a uma classe de percepções
cada uma das quais tem sido sucedida por um membro de uma classe de
percepções à qual pertence a segunda impressão. Nossas impressões de
sensação não exibem tal regularidade. Novas experiências emergem em
nossa consciência independentemente daquilo que aconteceu um instante
atrás, de modo que não é verdade que cada uma de nossas percepções é
causada por nossas outras percepções (STROUD, 1977, p. 126).
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O que uniria os diversos segmentos numa mesma consciência? Como diz
Stroud, se algumas impressões “aparecem na alma sem qualquer introdução”, o
conjunto de nossas percepções não pode formar uma cadeia causal singular (ver
STROUD, 1977, p. 127), isto é, cada segmento ou cadeia causal seria completo em si
mesmo: uma impressão a¹ causa uma idéia a² que, por sua vez, está relacionada
causalmente com a memória a³, que não tem nenhuma relação causal com b¹, e assim
por diante.
A descontinuidade e variabilidade das impressões de sensação ocorre porque
elas são os primeiros elos de uma cadeia causal que surge, por exemplo, apenas por
piscarmos os olhos ou virarmos a cabeça de um lado para outro. Segundo a ontologia
humeana, isso equivale a uma mudança ou substituição de percepções, a qual
aconteceria sem o suporte de qualquer ponto de referência. O que poderia fornecer
esse ponto de referência? Presumivelmente a localização espaço-temporal do corpo
do sujeito cognoscente. Afinal, é nele que ocorrem as percepções, tanto as extensas
quanto as inextensas8.
De que modo, porém, o nosso próprio corpo poderia ser útil para a formação
da crença em nossa identidade pessoal? Teríamos que ter uma idéia ou impressão
dele, de tal forma que pudéssemos distinguir o nosso eu dos objetos externos. Como
diz Hume, “a dificuldade, portanto, está em saber até que ponto nós somos objetos de
nossos sentidos” (T 189).
Segundo o teoria humeana, porém, a idéia que temos de nossos corpos não é
categorialmente distinta das percepções relativas aos objetos “externos” a nós:
não é propriamente nosso corpo o que percebemos quando olhamos para
nossos membros e partes corporais, mas certas impressões que entram
pelos sentidos; de modo que a atribuição de uma existência real e
corpórea a essas impressões, ou a seus objetos, é um ato da mente tão
difícil de explicar quanto o que estamos agora examinando [a atribuição
de existência externa] (T 191).
Isto é, da perspectiva fenomenológica das percepções, não há distinção entre
interno e externo, aparência e realidade: “todas as impressões (externas e internas,
paixões, afetos, sensações, dores e prazeres) são originalmente equivalentes” (T
190).
Mascarenhas (2001, p. 286-8) nos lembra que tal doutrina está ligada à
concepção humeana do espaço, segundo a qual esse não é algo anterior às nossas
percepções, mas sim proveniente do modo como as percepções táteis e visuais
aparecem diante da mente. Desse modo, “desde que a localização espacial das
impressões corpóreas é da mesma espécie que a das outras impressões, elas não
podem exercer a função privilegiada de unificar as percepções, sejam elas espaciais
ou não” (2001, p. 287).
8 Ver PEARS, 1990, p. 145 e FALKENSTEIN, 1995, passim.
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(iii) Alguns autores identificam a supressão do corpo e (conseqüentemente)
da contigüidade espacial entre as percepções como o problema fundamental da teoria
humeana. Devido a essa supressão, não haveria critérios para a individuação de
percepções inextensas:
duas percepções exatamente semelhantes em mentes distintas podem
diferir em suas relações causais [...] somente por diferirem em suas
relações de precedência ou contigüidade com outras percepções. Porém,
percepções simultâneas e exatamente semelhantes ocorrendo em mentes
distintas só podem diferir em suas relações causais por diferirem em suas
localizações espaciais (NOONAN, 1991, p. 100).
Ou seja, duas percepções f e g, especificamente idênticas e simultâneas, estão,
para todas as outras percepções, nas mesmas relações de semelhança e de
contigüidade temporal: se no feixe abcde a percepção c é idêntica a f, ela também é
idêntica a g, pois f e g são qualitativamente idênticas; se a percepção e foi seguida
pela percepção f, o mesmo pode ser dito dela em relação à percepção g, pois f e g são
simultâneas.
Assim, segundo os critérios de semelhança e causalidade, tanto f quanto g
poderiam estar contidas no feixe de percepções abcde, ainda que f e g fossem
numericamente distintas. A solução seria negar que as duas percepções fossem
indiscerníveis, mas isso só seria possível utilizando coordenadas espaciais para sua
individuação. Segundo Pears, tal dificuldade é um sintoma do mentalismo humeano,
que procura fundamentar a unidade mental tão somente sobre a contigüidade
temporal, “uma teoria inapelavelmente inadequada” (1990, p. 143). Julgo que essas
objeções estão, em suma, corretas. O meu ponto é que a solução que elas exigem é
pressuposta pela teoria humeana.
Ainda que relute em classificar a teoria humeana como um materialismo,
McIntire, por exemplo, diz o seguinte: "é a relação entre os eventos mentais e um
corpo que serve para distinguir uma mente de outra” (1995, p. 725). A solução
pressuposta por Hume, então, é a seguinte: embora nem todas as percepções sejam
localizáveis espacialmente, todas elas estão causalmente ligadas a um corpo, um
objeto físico: como se afirma na seção “Da imaterialidade da alma”, percepções
inextensas estão conjugadas a impressões espaciais. Ou seja, percepções inextensas
são causadas por objetos espaciais (cf. FALKENSTEIN, 1998, p. 342-3). Assim,
percepções inextensas são individuadas ao identificarmos seus antecedentes causais9.
9 Garrett afirma que essa localização derivativa das percepções inextensas não resolveria o problema,
“[p]ois não podemos dizer qual, dentre duas percepções qualitativamente idênticas e simultâneas, é o
efeito de um processo fisiológico em certo corpo, a menos que uma dessas percepções já esteja unida
[bundled] com as percepções que constituem a mente associada a esse corpo” (1981, p. 353). Essa
incapacidade ocorreria somente se a investigação humeana se desse na terceira pessoa. Contudo, o
método introspectivo de Hume implica que todas as percepções estão, de antemão, unidas. Ou seja, no
momento em que uma percepção ocorre, ela já está bundled com minhas outras percepções. Na
perspectiva da primeira pessoa, jamais se coloca a questão sobre se uma dada percepção pertence a
essa ou àquela mente.
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Qual é o papel do corpo, então? Ele resolve, a meu ver, o problema
ontológico, ao estar relacionado causalmente às nossas percepções. Dada a
causalidade entre nosso organismo, que é localizável espacialmente, e nossas
percepções, é ilegítima a questão sobre a individuação das percepções inextensas.
Mentes são, de fato, individuadas espacialmente. Ou seja, Hume não procura
individuar mentes e percepções com base em critérios epistemologicamente
transparentes (nesse caso, segundo a semelhança e a causalidade).
E por que o corpo não responde o problema epistemológico, ou seja, o
problema da origem da crença na identidade pessoal? Segundo a teoria humeana do
espaço, o corpo não é percebido como algo categoriamente distindo de nossas
percepções extensas. Além disso, há percepções inextensas. Ainda que essas sejam
individuadas por estarem conectadas a um corpo, elas não são localizáveis
espacialmente. A contigüidade espacial baseada no corpo não teria, dessa forma, um
papel na gênese da crença na identidade pessoal.
O que as dificuldades expostas nessa seção indicam é que, no Apêndice,
Hume percebeu que a semelhança e a causalidade são insuficientes para explicar de
que modo surge a crença na identidade pessoal. O ponto exato da dificuldade é tema
de debate entre os comentadores. Meu objetivo aqui foi apenas apresentar algumas
dessas interpretações.
Farei, a seguir, uma exposição e crítica de uma interpretação ontológica, que
vê no Apêndice um grave dano ao empirismo humeano. Se minhas críticas forem
plausíveis, uma evidência adicional será emprestada à leitura epistemológica
desenvolvida na presente seção. Com isso espero mostrar que o Apêndice não coloca
em questão o projeto filosófico humeano, cujo objetivo, fundamentado em seus
pressupostos materialistas, era o de investigar a mente de modo análogo ao que os
cientistas tratam dos outros objetos naturais.
O problema ontológico
Podemos considerar a interpretação ontológica tomando como ponto de
partida a análise feita por Wolff. Segundo esse autor, Hume teria iniciado o Tratado
com um preceito fundamental: o conhecimento empírico poderia ser explicado em
termos, somente, do conteúdo das percepções (ver 1995, p. 158). Hume teria
descoberto, contudo, que a atividade da mente é que é o princípio fundamental para a
constituição da experiência. A estrutura da filosofia humeana, porém, tornaria
inexprimíveis tais atividades, visto que as entidades identificadas pela teoria, as
percepções, são todas particulares. Ou seja, são incapazes de representar uma
atividade.
Por isso, segundo Wolff, quando procura explicar a atividade que gera a
relação causal, por exemplo, Hume apela a uma impressão de reflexão. Assim, Hume
“é forçado a expressar suas melhores idéias numa linguagem completamente
inadequada a elas” (ibid.). Qual é o fundamento dessa interpretação? O que significa
dizer que Hume pressupõe uma mente ativa, ao invés de uma mente redutível às
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percepções e aos princípios de associação? Ora, se a atividade da mente, tanto
quanto o conteúdo empírico, contribui para o caráter dessa experiência, tal atividade
deve ser conduzida por princípios inatos, anteriores à experiência. Wolff compara
esse pressuposto à tábua de categorias kantiana, que dá forma ao dado sensível (ver
1995, p. 173-4).
Wolff explica assim a relação causal: “as impressões associadas agem como
estímulos para ativar uma propensão inata; o resultado é uma disposição mental para
imaginar uma idéia relacionada quando da presença de uma impressão” (1995, p.
164). O autor fala numa propensão inata, anterior à experiência sensível. Ora, essa
“disposição mental” deve, então, ser considerada como transcendendo o conteúdo da
experiência? Penso que não.
Robinson e Nathanson, seguindo o caminho delineado por Wolff, aplicam a
tese das disposições mentais para esclarecer o Apêndice. Segundo Robinson, as
explicações do objeto externo e da conexão necessária pressupunham uma mente
cujas propensões produziam tais crenças. Quando passou a explicar a crença na
identidade pessoal, contudo, Hume teria percebido que seus princípios empiristas
eram incompatíveis com a entidade pressuposta nesses outros casos: “sua explicação
de por que pensamos ter uma idéia do eu depende da existência de um eu” (1995, p.
698).
Por que, contudo, Hume jamais abandonou suas teses sobre o objeto externo e
a conexão necessária? Embora o Apêndice tenha sido como que um golpe de
misericórdia na teoria da identidade pessoal, cuja exposição não foi sequer retomada
na Investigação sobre o Entendimento Humano, o mesmo não ocorre com as duas
outras teses. Ou seja, a falha descoberta a respeito da identidade pessoal não afeta
essas outras explicações.
Nathanson, por sua vez, retoma as teses de Robinson e com pequenas
modificações defende-a. Para isso, ele faz um importante esclarecimento, o qual
revela um pressuposto desse grupo de intérpretes. Entender esse pressuposto torna
mais simples descartá-lo.
Se o Apêndice mostra que a mente é um conjunto de disposições, e se essas
disposições não podem ser percepções, há um grave dano ao empirismo humeano.
Como vimos anteriormente acerca da interpretação de Wolff, o empirismo teria de
acomodar uma estrutura inata à mente. Como diz Nathanson, isso implicaria que as
associações de idéias descobertas por Hume não podem ser redutíveis a um mero
jogo entre idéias, mas sim a uma relação entre as idéias e uma mente: duas idéias são
semelhantes (ou contíguas, ou relacionadas causalmente) para uma mente, e não em
si mesmas. A ordem no mundo ideal seria espontânea, não-derivada passivamente da
experiência: “as propensões que estou invocando são propriedades da mente, e não
das percepções” (1976, p. 44), diz Nathanson. Ou seja, para além da tábula rasa, a
mente do empirismo seria muito mais substancial que o feixe de percepções
humeano, cuja existência prescindiria de um palco. Segundo Wolff, Robinson e
Nathanson, haveria não só um palco (a mente) como todo o elenco (as propensões e
disposições da mente) esperando pela platéia (as percepções).
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Como diz Beauchamp, contudo, é implausível que em quatro ou cinco
parágrafos Hume tenha rejeitado todo o Livro I do Tratado: “Hume está
genuinamente perplexo acerca do modo de proporcionar uma explicação mais
profunda dos princípios de associação [...] Hume exprime um desencanto com todas
as teorias conhecidas, inclusive com a sua” (1979, p. 39).
Beauchamp assinala que a interpretação de Wolff convenceu alguns
comentadores de que os atos mentais ou imaginativos atuantes no decorrer do Livro
1 pressupunham um eu sintetizador à la Kant, ou seja, um eu estruturado de acordo
com princípios anteriores à experiência. O que eu defendo é uma interpretação
materialista da teoria humeana: o universo é matéria em movimento, máxima que,
segundo os projetos de Hobbes e Hume, deveria ser seguida não só nas ciências
naturais como nas ciências morais (ver RUSSELL 1988, p. 409-10).
O ponto culminante dessa concepção é encontrado justamente nos temas ora
analisados, onde o eu (Hume também usa os termos mind e soul), tido por alguns
como reduto inexpugnável do espírito e do livre-arbítrio, é identificado por Hume
como um feixe de percepções relacionadas causalmente. É desse feixe que surge a
consciência (e, conseqüentemente, a identidade pessoal), ou seja, ela não ocorre
noutro âmbito que não o da matéria em movimento.
Beauchamp diz duas coisas que resumem a concepção ontológica que atribuo
a Hume e que servirão de introdução àquilo que direi a seguir: “Não vejo razão
alguma para que Hume não possa explicar redutivamente todo discurso sobre
faculdades, propensões e conexões em termos de cadeias causais entre percepções
[...] Talvez ele não consiga reduzir coerentente atividades mentais a percepções, mas
ainda não vi qualquer argumento que mostre que ele não o possa” (1979, p. 40-1).
Segundo Nathanson, sua interpretação mostra que as associações entre idéias
ocorrem desde que tais idéias afetem uma mente. Vejamos uma das explicações de
Hume para a associação de idéias: “Teria sido fácil fazer uma dissecção imaginária
do cérebro, e mostrar por que, ao concebermos uma determinada idéia, os espíritos
animais se espalham por todas as vias contíguas, despertando as outras idéias
relacionadas à primeira” (T 60). Deveríamos, aqui, pressupor uma mente para
realizar as associações? Se as percepções são redutíveis a eventos físicos, o cérebro
desempenharia uma função análoga à da mente: é nele que ocorrem os movimentos
dos espíritos animais etc. Deveríamos dizer que o cérebro funciona de acordo com
princípios? Com disposições e propensões anteriores à experiência? Isso parece
correto, mas da mesma forma que a cor dos olhos ou o formato do nariz é anterior à
experiência. Ou seja, os princípios do cérebro não são anteriores à toda experiência.
Eles podem o ser em relação à experiência individual, mas não anteriores à
experiência da espécie.
Mesmo que haja propensões ditas inatas, elas são causadas. A ordem em
nossa mente, assim como a ordem na natureza, surge por acaso e necessidade (sem
uma razão, mas não sem causas). Assim, não é necessário postular uma mente para
explicar as associações de idéias. Ou melhor, se nos referirmos à mente, estamos nos
referindo veladamente a um conjunto de fatos e princípios para sempre fora do
âmbito do nosso entendimento. Mas não fora do âmbito da natureza, onde tudo tem
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uma causa: “o início do movimento na própria matéria é a priori tão concebível
quanto sua comunicação a partir da mente, da inteligência” (HUME 1992, p. 106-7).
Não são os princípios de associação padrões que identificam o “movimento” de
nossos pensamentos? Por que pensar que tais associações, então, surgem da estrutura
da mente e não das relações entre o homem e seu meio ambiente? Ou seja, das
relações entre a parte e o todo: o que é o feixe de percepções pessoal senão uma parte
de um todo determinado causalmente?
Cada indivíduo está em perpétua mudança, bem como toda parte de cada
indivíduo; mas o todo, não obstante, permanece aparentemente o mesmo.
Não seria razoável esperar a ocorrência de uma situação desse tipo, ou
mesmo estar seguro dela, a partir das circunvoluções eternas da matéria
não-direcionada? (HUME 1992, p. 109-10).
Supor que a mente seja dotada de propensões e disposições que condicionam
a experiência ou as associações de idéias é supor que o pensamento é uma causa
ativa, ou seja, uma causa incausada. Contudo, não só o materialismo ontológico de
Hume contradiz isso, como seu próprio empirismo exige que, onde houver conteúdo
de pensamento, deve haver uma experiência anterior. E a experiência, para um
filósofo materialista, não é nada mais que o produto da interação entre dois objetos
materiais (ver BUCKLE, 2007, p. 562).
Ao contestar Cleantes, para quem toda ordem requer um desígnio, Filo diz o
seguinte:
Em todos os exemplos que já presenciamos, as idéias são copiadas dos
objetos reais e são ectípicas, não arquetípicas, para expressar-me em
termos eruditos. Você reverte essa ordem e dá precedência ao
pensamento. Em todos os casos que presenciamos, o pensamento não tem
influência sobre a matéria, exceto naqueles em que essa matéria está de
tal modo conjugada ao pensamento a ponto de exercer igualmente uma
influência recíproca sobre ele (HUME, 1992, p. 112).
Desse modo, ainda que se possa, em algum sentido, dizer que a mente
também seja responsável pelo conteúdo da experiência, esse conteúdo deve, segundo
o princípio da cópia, ter sido copiado de eventos externos: as idéias são ectípicas, e
não arquetípicas. Ou seja: as disposições e propensões mentais são, numa filosofia
naturalista, causadas.
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