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Cegueira. Aprender a viver sem uma luz ao fundo do tĂșnel


 por Lerparaver
O sotaque acentuado denuncia a proveniĂȘncia alentejana de Ana Gil mal pronuncia as primeiras palavras. Chegou hĂĄ menos de dois meses ao centro, depois de sofrer um derrame cerebral que lhe afectou os nervos Ăłpticos. Aos 42 anos, a funcionĂĄria da CĂąmara Municipal de Sousel perdeu por completo a visĂŁo, mas os 25 dias em que esteve internada no Hospital de SĂŁo JosĂ©, em Lisboa, em Dezembro de 2011, deram-lhe tempo para reajustar prioridades. “Nos primeiros dias eu nem sabia se ia sobreviver. Mas a minha vontade era tanta que perder a visĂŁo foi o menos importante”, confessa.
Soube da existĂȘncia do Centro Nossa Senhora dos Anjos atravĂ©s dos serviços sociais do hospital e candidatou-se Ă  mesma entrevista inicial por que passam todos os utentes. A conversa serve para avaliar o estado psicolĂłgico de cada candidato e determinar se pode ser acompanhado durante alguns meses no espaço. “Para nĂłs, o mais complicado Ă© lidar com a depressĂŁo e o desalento das pessoas, porque isso perturba-as tanto que dificulta a aprendizagem”, confessa o psicĂłlogo AntĂłnio Feliciano.
Ao cimo da Travessa do Recolhimento de LĂĄzaro LeitĂŁo, em Lisboa, o centro dedica-se a dar uma nova esperança a pessoas que, como Ana Gil, perderam aquele que serĂĄ o mais importante dos cinco sentidos: a visĂŁo. O espaço Ă© o Ășnico em Portugal a trabalhar na reabilitação de pessoas com cegueira recĂ©m- -adquirida ou com baixa visĂŁo. Abriu portas hĂĄ exactamente 50 anos e em 2011 a gestĂŁo foi transferida da Segurança Social para a Santa Casa da MisericĂłrdia de Lisboa. Acolhe utentes de todo o paĂ­s em regime de internato, com perĂ­odos que variam entre os seis meses e um ano. Ao longo desse tempo, os 12 tĂ©cnicos do centro dĂŁo apoio a quem passou por uma perda sĂșbita e irreparĂĄvel. Uma perda que exige um luto, mas que nĂŁo Ă© sinĂłnimo do fim. Ao fundo do tĂșnel pode nĂŁo haver luz, mas hĂĄ uma nova oportunidade para viver.
“A tua realidade agora Ă© outra”, disse Ana Gil a si mesma, ainda no hospital, “e o que ficou para trĂĄs ficou. Agora vais ter de encontrar soluçÔes para enfrentar as coisas.” Nas primeiras semanas, o estado de espĂ­rito nĂŁo se manteve sempre tĂŁo positivo, porque reaprender a viver quando se estĂĄ a meio da vida Ă© duro e a angĂșstia acaba por ocupar o seu lugar. Mas para a utente mais recente do centro a adaptação Ă  nova realidade foi rĂĄpida e em poucos dias ela passou a conhecer os cantos Ă  casa. Porque Ă© “uma pessoa despachada”, agarrou-se Ă  aprendizagem das tarefas que sĂŁo para si mais importantes: a informĂĄtica – porque quer “voltar Ă  actividade profissional que tinha” – e a mobilidade.
Primeiros passos Ana Gil Ă© acompanhadas nessas ĂĄreas por tĂ©cnicos especializados, como Ana Henriques, professora de Iniciação Ă s TĂ©cnicas de Informação e Comunicação (TIC 1). Em voz alta, a professora dita, palavra a palavra, aquilo que deve ser escrito pelos dois utentes que naquela aula tĂȘm a primeira aproximação ao computador. Sentados em duas secretĂĄrias lado a lado, guiam os dedos pelo teclado com a ajuda de duas marcas que assinalam as letras E e J e que servem de referĂȘncia para todas as outras. No ar, com a voz de Ana Henriques ressoa uma outra, metĂĄlica, que sai das colunas. O software de reconhecimento do ecrĂŁ serve de guia para os alunos e Ă© a Ășnica forma de saberem os passos a dar quando estĂŁo frente ao ecrĂŁ. O computador representa a maior janela para um mundo fora da realidade rotineira. “Para uma pessoa cega, ter um computador com acesso Ă  internet Ă© estar acompanhada estando sozinha”, explica ArmĂ©nio Nunes, professor de TIC 2. Ali os utentes “aprendem tudo o que precisam de saber fazer no correio electrĂłnico, utilizam o Skype e o Messenger e navegam na internet”.
Para quem nĂŁo esteja no centro, e nĂŁo frequente acçÔes de formação profissional, ArmĂ©nio Nunes desenvolveu, hĂĄ dez anos, o Programa de Apoio em Autonomias de Tecnologias de Informação e Comunicação. Um projecto que funciona como sistema de ensino Ă  distĂąncia. A partir do gabinete, onde tambĂ©m dĂĄ aulas, responde actualmente a dĂșvidas de 17 alunos, uns do Porto outros dos Açores, e hĂĄ atĂ© quem lhe escreva dos Estados Unidos. Garante que o prazer que tem nesta actividade vem de quando sente “as pessoas ficar mais contentes, a comunicar e com o amor-prĂłprio a subir”.
autonomia A disposição dos alimentos no prato Ă© guiada pelos ponteiros do relĂłgio. A carne vai para as trĂȘs horas, a salada ou os legumes para as 12 e o arroz ou as massas ficam entre as oito e as nove. Uma acção simples, como pĂŽr a mesa, exige o mesmo mĂ©todo e rigor que todas as tarefas do quotidiano para quem, como TĂąnia, nĂŁo tem o recurso da visĂŁo. Hoje tem 19 anos e chegou a Portugal em Novembro, ao abrigo de um protocolo para a ĂĄrea da saĂșde entre o Estado portuguĂȘs e as antigas colĂłnias. Os primeiros sinais de que algo nĂŁo estava bem com os seus olhos apareceram quando era ainda uma criança de sete anos. Entretanto perdeu a quase totalidade da visĂŁo e tenta reaprender a naturalidade das actividades que antes realizava com simples recurso aos olhos. “Encaramos isto como uma escola, mas onde tem de haver tempo para a interiorização e para a reflexĂŁo, porque aceitar que se vai ficar cego para a vida Ă© complicado”, diz Ana MagalhĂŁes, directora do centro desde Março. A reabilitação de cada utente Ă© encarada de forma personalizada, com as suas necessidades e os momentos prĂłprios de evolução, porque â€œĂ© preciso tempo para pensar, Ă© preciso dar espaço Ă s pessoas para interiorizar as aprendizagens, algumas delas muito duras”.
Uma das maiores barreiras Ă© a da falta de mobilidade. Alguns utentes chegam ao centro depois de meses limitados aos ambientes mais familiares, deslocando-se entre o quarto, a sala e a cozinha das suas casas. Readquirir o sentido de orientação, as noçÔes de espaço e o equilĂ­brio sĂŁo alguns dos principais momentos de aprendizagem apĂłs a perda da visĂŁo. Judite Martins esteve dois anos “presa Ă  casa”, depois de um deslocamento da retina ter encerrado um processo de vĂĄrios anos, entre perdas e recuperaçÔes da visĂŁo. A ex-utente interrompe por momentos a leitura em braille de um conto infantil – tĂ©cnica que aprendeu no centro – para recordar os 12 meses que passou em reabilitação: “Fui Ă  luta e aprendi tudo. Se no fim-de-semana tiver dez pessoas em casa”, diz com orgulho, “cozinho para todos sem precisar da ajuda de ninguĂ©m.”
“HĂĄ uma reaprendizagem para a vida”, sublinha SĂłnia Grilo, a mais recente tĂ©cnica do centro, que faz o acompanhamento das aulas de actividade motora, piscina e mobilidade. Numa antecĂąmara da capela transformada em ginĂĄsio, a professora utiliza a recriação de um jogo de bowling para treinar a orientação com os utentes. Colocados numa ponta da sala, lançam pelo chĂŁo uma bola especial, com pequenos guizos no interior, tentando acertar com a direcção de onde veio o comando de voz de SĂłnia Grilo. Aplicados Ă  vida quotidiana, exercĂ­cios como este vĂŁo permitir distinguir a proveniĂȘncia de sons e ajudar a que as pessoas voltem a orientar--se no espaço.
“Os utentes que passam pelo centro podem sair daqui com um grau de autonomia satisfatĂłrio”, assegura o psicĂłlogo AntĂłnio Feliciano. No entanto, hĂĄ limitaçÔes que nunca serĂŁo ultrapassadas, “porque em termos de mobilidade as pessoas podem aprender a movimentar-se e a utilizar os transportes pĂșblicos, mas, excepto em casos excepcionais, ficam limitadas aos mesmos percursos”. O acompanhamento psicolĂłgico Ă©, por isso, essencial para lidar com as frustraçÔes que surgem com o processo de reabilitação, como o momento em que se começa a usar a bengala. Porque representa para o prĂłprio uma limitação que nĂŁo existia e porque se perde o anonimato perante a sociedade, apresentando quem nĂŁo vĂȘ como alguĂ©m diferente.
“Para nĂłs o mais complicado Ă© lidar com a depressĂŁo e o desalento das pessoas, porque isso perturba-as tanto que dificulta a aprendizagem”, mas “como estĂŁo ocupadas e em contacto com outras, rapidamente surge uma esperança”, explica AntĂłnio Feliciano. Conseguir movimentar-se Ă© um passo fundamental na conquista de autonomia, mas hĂĄ outras tarefas do dia-a-dia que tĂȘm de ser trabalhadas. Na aula de Actividades da Vida Quotidiana – CompetĂȘncias Sociais, a aprendizagem de TĂąnia vai muito alĂ©m de pĂŽr a mesa. Ao passar os dedos por uma moeda de dois cĂȘntimos apercebe--se de que hĂĄ um veio a meio – “parecem duas moedas coladas” – que a distingue das outras. O truque para as notas Ă© dobrĂĄ-las ao meio, enrolĂĄ-las em volta do indicador e unir as pontas por cima do dedo. A quantidade de papel que sobra, em função do tamanho de cada nota, permite perceber o que tem nas mĂŁos. Um processo simples, embora demorado.
futuro lĂĄ fora Foram precisos alguns anos de “reclusĂŁo” para que Paulo Almeida se “ambientasse Ă  ideia” e aceitasse a nova fase da vida em que se encontra. Hoje garante que “quer fazer tudo o que fazia antes de perder a visĂŁo”. Prova disso Ă© a exposição de fotografias que apresentou na cerimĂłnia do cinquentenĂĄrio do centro dos Anjos e que agora preenche as paredes do refeitĂłrio. Imagens captadas nos Ășltimos dois meses, jĂĄ como utente da instituição.
O prazer da fotografia Ă© uma forma de preparar novos projectos, porque a vida fora do centro vai continuar quando estiver concluĂ­da a reabilitação: “Gostava de fotografar Lisboa da minha perspectiva, a perspectiva de alguĂ©m que nĂŁo vĂȘ.” Outro objectivo que gostaria de alcançar seria tirar um curso de massagista, que lhe permitisse ter uma actividade regular mais tarde, porque “nĂŁo existem muitas saĂ­das para quem nĂŁo vĂȘ”. “Daquilo que tenho verificado em experiĂȘncias anteriores, Ă© muito difĂ­cil recolocar as pessoas no mercado de trabalho”, lamenta Ana MagalhĂŁes, que tem sentido as dificuldades acentuarem-se nos Ășltimos meses, com o agravamento da situação econĂłmica do paĂ­s. “Neste momento hĂĄ um grande vazio no mercado de trabalho”, aponta SĂłnia Grilo, o que dificulta a motivação dos utentes, pela falta de perspectivas. “Se nĂłs temos de dar 100% no trabalho, eles tĂȘm de dar 5000% para mostrar que nunca falham”, defende a professora. “Depois de se conseguir renascer Ă© voltar a matar a pessoa”, conclui a professora. “Por outro lado”, lamenta Paulo Almeida, “existem algumas leis no nosso paĂ­s que nĂŁo sĂŁo cumpridas pelas empresas”, o que torna impossĂ­vel o acesso a determinados postos de trabalho. “A sociedade trata-nos como uns coitadinhos, mas nĂŁo me revejo nesse estatuto” porque “tenho tanto valor como uma pessoa que tenha todas as suas capacidades”, diz.
A par da marginalização profissional, ressalta dos testemunhos a sensação de alguma insensibilidade e incompreensĂŁo por parte da sociedade. Depois de se movimentar pela cozinha do centro, enquanto preparava o almoço para aquele dia – uma das actividades que ali se desenvolvem –, Teresa RascĂŁo observou: “As pessoas querem ajudar e a primeira coisa que fazem Ă© agarrar-nos no braço. Isso Ă© errado, porque acabam por deixar-nos num espaço que para nĂłs Ă© vazio. Ficamos sem referĂȘncias.” A experiĂȘncia leva-a a defender que “toda a gente devia aprender como se agarra uma pessoa cega e como se deve caminhar em simultĂąneo com ela”, para evitar alguns acidentes que acabam por acontecer. Outro problema, destaca Paulo Almeida, sĂŁo os passeios, que “nĂŁo estĂŁo preparados para pessoas cegas”. Caixas de electricidade, carros nos locais errados e postes baixos no rebordo dos passeios sĂŁo outros exemplos daquilo que, para quem nĂŁo vĂȘ, representa um perigo eminente.
Actualmente hĂĄ 14 pessoas em lista de espera para integrar o Centro Nossa Senhora dos Anjos e Ana MagalhĂŁes sublinha a disponibilidade da instituição para trabalhar com mĂșsicos ou estudantes da ĂĄrea que promovam actividades no local, pelo “papel lĂșdico-terapĂȘutico” que a actividade representa. Para mais tarde estĂĄ a ser pensada a abertura de apartamentos para residĂȘncias individuais, que permitam trabalhar a autonomia dos utentes da instituição.
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